Nascer de novo
Por Guilherme Bara
Em 29 de dezembro, Clara, minha filha, completa um ano e sete meses.
Desde o momento que eu e minha esposa decidimos ter um filho, tenho vivido uma revolução interna. Revolução esta que traz uma infinidade de experiências e sentimentos que me levam a redimensionar meu olhar para muitas coisas da vida e do mundo.
Com seu nascimento, aprendi que ter um filho vai além de gerar uma nova pessoa. Ter um filho é gerar várias novas pessoas.
A Clara me ensina a respeitar ainda mais minha mãe, meu pai e vários outros que participaram de perto da minha criação. Destaco aqui a Maria, senhora de 96 anos pela qual tenho um amor imenso.
A Clara me traz uma alegria permanente de conviver com um ser puro que descobre e significa o mundo dia a dia, sempre com um gesto novo, tocante, surpreendente.
Mas a experiência da paternidade vai bem além disto. Ela traz uma oportunidade mágica para que eu revise diversos pontos, revisite meus valores e parâmetros.
Ativo as sensações das diferentes fases da infância que aprisionava em meu inconsciente e me deparo, quase que diariamente, com minhas “sombras”, parte delas já bem guardadas ou mesmo camufladas.
Cada exemplo ou ensinamento que passo à minha filha, é como provocar a mim mesmo. É tentar trazer para a minha prática tudo aquilo que desejo que minha filha tenha como conceito, como valor.
É como viver uma enorme ruptura, pois após 33 anos vivendo de uma maneira, com uma visão de mundo consolidada, um serzinho de pouco mais de 50cm chega e te diz que é hora de nascer de novo.
E todas as teias que nos conectam com o universo são rompidas nos jogando em uma sensação de reinicio.
É a exploração quase simultânea dos sentimentos mais antagônicos.
É cultuar a vida e temer mais que nunca a morte.
É olhar para o mundo e para a sociedade com os olhos mais abertos e atentos.
É trocar de canal quando aparece uma notícia triste (é viver trocando de canal).
É receber a chance de ser mais conectado e mais humano.
Assim como a Clara que veio de algum mundo para cá e tem que desbravar nosso planeta, eu me vi com a oportunidade um pouco assustadora, porém preciosa de após muitos anos, me reposicionar em relação à vida.
Obrigado por mais esta, Clarinha.
Aceitar a deficiência
Por Guilherme Bara
Quando perdemos a visão ao longo da vida, principalmente na adolescência, muitas vezes, sofremos da principal barreira para nos adaptarmos e convivermos bem com esta nova situação, o autopreconceito.
As pessoas com deficiência adquirida não estão livres de um dos sentimentos inerentes ao ser humano: o preconceito.
Projetamos na sociedade nossa própria visão em relação à deficiência. Nossa dificuldade de aceitar o diferente, de evidenciar uma dificuldade, de aceitarmos as pessoas fora do padrão.
Criados em uma cultura excludente, em que o mundo é protagonizado por super homens e mulheres, muitas vezes demoramos para encontrar o caminho alternativo para fazer as coisas com naturalidade. Ler usando braille, pedir ajuda para encontrar algo ou andar com o auxílio do condutor são atitudes que negamos em prol de uma suposta normalidade, de um jeito aceito pela sociedade e por nós.
Recusamos ajuda, dizemos não ao recurso, abrimos mão de ferramentas por considerarmos símbolos de uma situação de inferioridade, de incapacidade.
Procuramos o padrão para sermos aceitos, para aceitarmos a nós mesmos.
Insistimos em fingir que somos o que não somos.
Mas tem uma hora, ainda bem, que dá tudo errado. Tropeçamos feio no degrau que fingimos ver, falamos a coisa certa para a menina errada, entramos na porta que estava fechada. Só aí sentimos a dor da mudança, uma dor profunda que faz a gente parar para refletir, parar para procurar um novo caminho. Faz com que pensemos se somos maiores ou menores que os símbolos dos quais insistimos em fugir.
Mais cedo ou mais tarde, com menos ou mais dor, nós encontramos o caminho. Percebemos que maior que qualquer símbolo é a pessoa e suas atitudes; percebemos que não enganávamos ninguém, e aí começamos a assumir nossa condição e os recursos para que tenhamos plenitude em nossas ações.
Quem dependia de alguém para ler o texto, passa a usar o Braille ou o leitor de tela; no lugar de pedirmos ajuda para ir até a esquina, andamos com autonomia usando uma bengala; perguntamos onde está ao invés de disfarçarmos para procurar. Quando assumimos os recursos nos damos a oportunidade de sermos capazes.
O primeiro passo para a inclusão é incluirmos a nós mesmos, já que a aceitação pelos outros passa, inicialmente, pela nossa autoaceitação.
O papel da educação inclusiva em minha vida
Por: Guilherme Bara
Como muitos já devem saber, tenho deficiência visual. Ela é causada por uma retinoze pigmentar (doença degenerativa que causa a má irrigação das células da retina e a perda gradativa da visão).
Estudei no Colégio Dante Alighieri na cidade de São Paulo desde o pré-primário. O Dante é um colégio convencional, longe de ser uma escola especializada no atendimento a pessoas com deficiência visual.
Penso que ter estudado em uma escola convencional foi fundamental para meu processo de inclusão na sociedade. Ao longo dos anos fui perdendo a visão aos poucos e meus amigos acompanharam todo esse processo.
Claro que minha deficiência estava ali, não tinha como ser desconsiderada por ninguém e nem deveria. Isto era o mais prazeroso; eu interagia de forma natural com meus colegas. As pessoas mais do que viviam, conviviam comigo me aceitando.
Isto só acontecia porque aquelas pessoas do colégio (colegas de classe, professores e funcionários) tinham um contato diário comigo.
No começo, como quase todo mundo, eles ficavam, apenas, observando, vendo como eu fazia as coisas; um pouco com receio de se aproximarem, principalmente os professores e funcionários. Já as crianças chegavam com mais facilidade, menos censuras e menos estratégias, o que facilitava para que todos se sentissem mais à vontade.
Percebiam que eu era mais um aluno, que, obviamente, tinha uma característica incomum. Não enxergava, mas que era um menino que brincava, me divertia, gostava de futebol, conversava na aula e tinha as características semelhantes às crianças da minha turma. Rapidamente a relação era desmistificada e eu me sentia à vontade.
Confesso que nesta época de minha vida, principalmente depois da minha visão ter piorado de forma mais acelerada, eu mesmo tinha dificuldades em aceitar minha deficiência.
Tentava escondê-la, e vocês podem imaginar como é viver querendo esconder uma coisa que todo mundo está vendo. Eu tocava pouco no assunto e meus amigos pouco queriam saber. O que eles queriam saber, eles já sabiam melhor que ninguém, pois estavam comigo todos os dias. E pode ser também que eles se sentissem intimidados pela minha postura de pouco falar sobre o assunto. Era uma situação nova para mim também, pois a retinoze faz com que se perca a visão aos poucos e quando você se acostuma com uma referência visual logo ela já muda e tudo muda.
Vivi toda esta fase e depois todo o processo de aceitação de minha deficiência junto aos meus amigos, convivendo, aprendendo, experimentando, rindo muito, me divertindo e às vezes chorando, mas sempre com eles.
Às vezes penso como teria sido minha formação se tivesse freqüentado uma escola própria para pessoas cegas, se não tivesse meus amigos da escola e do prédio, se meus amigos fossem apenas as crianças que não enxergam. Como eu me relacionaria com o resto do mundo hoje.
Sou casado, pai de uma menina linda que no último dia 29 completou nove meses. Com uma vida profissional bem resolvida, e amizades sólidas, me sinto uma pessoa feliz, muito de bem com a vida. Sou convicto de que ter, desde criança, convivido dentro de instituições regulares, contribuiu bastante para hoje eu ser uma pessoa socialmente incluída.
Carnaval, eu também quero.
Por Guilherme Bara
Apontado por muitos como um dos maiores espetáculos da Terra, o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro encantou mais uma vez os milhões de telespectadores que puderam acompanhar em cada detalhe a passagem das 13 agremiações do Grupo Especial na Marquês de Sapucaí.
Após o jantar, liguei a televisão a fim de curtir tudo que as escolas trariam para prender a atenção do público. O enredo, os carros alegóricos e as fantasias, as coreografias, os personagens e tudo mais.
Quando as escolas começaram a passar, percebi que minha expectativa seria frustrada. Não pela falta de talento, criatividade ou beleza por parte das concorrentes ao título do carnaval, e sim, porque as maravilhas apresentadas seriam privadas as pessoas que como eu são cegas ou tem dificuldade visual.
Os apresentadores falavam dos carros e das alegorias com um superficial toque de descrição, insuficiente para uma boa compreensão por parte das pessoas que não conseguiam ver as imagens. A descrição era complementar.
A partir da segunda escola, perdi a atenção no desfile e comecei a imaginar quais seriam os argumentos para convencer os apresentadores a detalhar a descrição das imagens. As pessoas cegas poderiam ter acesso e usufruir de uma maneira mais intensa do desfile. Pessoas idosas e com baixa visão, além de pessoas com dislexia também se beneficiariam.
E quanto às pessoas que não tem dificuldade alguma em enxergar? Fiz-me esta pergunta, porque, infelizmente apenas esta resposta poderia ser capaz de sensibilizar os responsáveis pela transmissão do carnaval.
Uma narração rica em detalhes faz com que o telespectador repare mais em cada momento, em cada situação mencionada. Quando citamos o detalhe prendemos a atenção da pessoa. Conquistamos seu olhar, aguçamos sua percepção o que traz uma espécie de energia e sentimento para o ato de olhar, de ver.
Uma simples orientação faria com que a transmissão naturalmente ficasse mais inclusiva e prazerosa para todos que a assistiam.
Igualmente em outros temas como as calçadas, quando você facilita o acesso para as pessoas com deficiência, beneficia a vida da população como um todo. Quem sabe no próximo carnaval…